quinta-feira, janeiro 18, 2007

Médicos entre a Lei e a Ética

Tal como são raras as mulheres que abortaram e, por causa disso, foram condenadas em tribunal, também não se conhecem casos de médicos que tenham, enquanto tal, provocado interrupções de gravidez, mesmo dentro dos casos previstos na lei, e tenham sido processados judicial e disciplinarmente.
Isto apesar de, como reconhecem os próprios clínicos à «boca pequena», nem sempre se cumprirem nos hospitais públicos os prazos previstos na actual legislação e de se saber que o circuito do aborto clandestino inclui muitos médicos.
O quadro legal para o aborto é conhecido. Mas as regras de comportamento ético dos médicos para a mesma matéria mantêm-se indefinidas para o público em geral e para as muitas mulheres que pensam em recorrer à interrupção voluntária da gravidez nos circuitos públicos legais.
Tem-se falado muito na objecção de consciência dos clínicos, mas na sua base não está só uma questão de atitude moral e religiosa ou de consciência social do médico. É que o Código de Ética dos médicos, o guia orientador, regulador e limitador do comportamento desta classe profissional, define um princípio muito claro nesta matéria: «O médico deve guardar respeito pela vida humana desde o seu início; constitui falta deontológica grave a prática do aborto; não é considerado aborto uma terapêutica imposta pela situação clínica da doente como único meio capaz de salvaguardar a sua vida e que possa ter como consequência a interrupção da gravidez.» Como tem vindo a explicar o bastonário dos médicos, o cardiologista Carlos Ribeiro, só é permitido aos médicos fazer interrupções da gravidez por razões médicas, nunca sociais ou económicas. De facto, neste momento, nenhum médico que queira ser rigoroso com o seu Código de Ética pode cumprir a legislação em vigor na parte que prevê o aborto em caso de violação e a nova lei que vier a ser aprovada com um «sim» no referendo, uma vez que agora está em causa a interrupção voluntária da gravidez por razões sociais.
Este Código de Ética, que não foi transformado em decreto-lei da República (como aconteceu em vários países da Europa), remete o seu não-cumprimento para o Estatuto Disciplinar dos Médicos, esse sim um diploma publicado em diário oficial. Pelo desrespeito da Ética da classe, os médicos podem, ao abrigo deste estatuto, ser condenados, na pior das penas, à suspensão e mesmo à expulsão do exercício da profissão.
E é possível que uma lei da Nação esteja em total contradição com um código de princípios cujo não-cumprimento implica pesadas sanções? «Não», responde Machado Cândido, dirigente da Ordem dos Médicos. Por isso, já por várias vezes se discutiu internamente a necessidade de alterar o Código de Ética. «Esse é um debate que está em curso dentro da Ordem e não só. É um movimento mais alargado, que está a ser feito ao nível europeu. E que não passa apenas pela questão do aborto. Com todas as mudanças nas tecnologias, nos equipamentos, nas capacidades de diagnóstico, há muitos aspectos que é preciso começar a mudar», defende Machado Cândido, acrescentando: «É mesmo preciso pôr em cima da mesa do debate a simples questão de saber se queremos um Código transformado em lei da Repúpoblica ou se o mantemos como um simples enunciado de princípios. É preciso saber em qual das formas ele é mais eficaz.»
A verdade é que esta questão é tão ou mais importante, num debate entre médicos sobre o aborto, como a própria alteração do Código. Segundo o preâmbulo do actual Código, este «enunciado de princípios» nunca passou a papel de lei «porque se considerou bem mais importante a ética médica e o valor dos direitos humanos do que a própria lei emanada dos governos». Mas não só: nesta posição claramente política, os médicos defenderam então (em 1985) que passar o código a lei era também tentar pôr os médicos «a participarem na pena de morte, nos EUA, no controlo psiquiátrico dos dissidentes, na URSS, e no aborto eugénico, em muitos países ditos evoluídos».
Já depois da aprovação da primeira lei do aborto, em 1984, a Ordem dos Médicos (OM) foi obrigada a promover uma discussão dentro da classe sobre as capacidades da ciência médica no diagnóstico pré-natal, em situações de aborto eugénico ou terapêutico. A lei veio permitir a interrupção voluntária da gravidez até às 12 semanas para o aborto terapêutico e até às 16 para o eugénico. Mas a posição da classe médica não foi completamente esclarecedora. Considerou, então, que as capacidades da tecnologia médica ainda não eliminavam a possibilidade de surgirem falsas respostas e sugeriu um aumento dos prazos. Já quanto ao aborto em caso de violação, a questão não passou das recomendações ao Conselho Disciplinar da Ordem, para que fosse benevolente em eventuais casos surgidos desse género.
Quando, no início deste ano, a nova lei foi aprovada e o debate em torno do aborto se tornou mais intenso, o bastonário da OM chegou a vir a público defender a necessidade de questionar directamente os médicos sobre «a alteração do Código de Ética, para permitir adaptá-lo à nova lei». Entre os dirigentes daquela instituição, parece consensual a necessidade de compatibilizar o Código à lei, mas até agora nada foi feito, e não é de esperar que o venha a ser até ao final deste ano, ou seja, até às eleições que vão decorrer na Ordem dos Médicos para as estruturas dirigentes e para o lugar de bastonário.
Neste momento, há já três candidatos ao cargo máximo da Ordem que, em declarações ao EXPRESSO, são unânimes em defender a necessidade «urgente» de «discutir e decidir o assunto».
Maria do Céu Machado defende que «é preciso mudar, e há estruturas internas na Ordem com competência para o fazer». Para esta candidata, pediatra e directora de serviços no Hospital Amadora-Sintra, não se deve promover nenhum referendo específico na classe sobre o Código de Ética. «O referendo de domingo já vai expressar a vontade dos portugueses nessa matéria», diz ela. Mas Maria do Céu Machado não nega a possibilidade de grande parte dos colegas serem «legitimamente» objectores de consciência - aliás, «vamos provavelmente assistir, nos primeiros tempos desta nova lei e se ganhar o 'sim', a um boicote passivo à pratica do aborto nas condições previstas».
Já Germano de Sousa é mais prudente. Defende que «as assembleias e os plenários de delegados que representam a classe têm competência estatutária para alterar o Código de Ética. É, por isso, a eles que se deve pedir que o façam», afirma, acrescentando: «Só estranho que nestes últimos anos isso ainda não tenha acontecido.» Afinal, este era um debate há muito previsível, adianta. Para este analista, também director de serviços do Amadora-Sintra, o Código só será alterado se, então, essa for a vontade expressa nas assembleias-gerais e regionais da Ordem dos Médicos. «Se os médicos entenderem manter as coisas como estão, então manter-se-á o Código diferente da lei.» E para os casos dos médicos não-objectores, ou seja, aqueles que entendam cumprir a lei, o desrespeito ao Código de Ética terá de ser, em termos disciplinares, analisado com benevolência.
Finalmente, a candidata Ana Aleixo, directora clínica do Hospital São Francisco Xavier, apesar de considerar que se deve «mudar já, porque é preciso que o Código de Ética se vá adaptando às mudanças e evoluções que se vão dando na realidade», defende que «uma coisa é a lei e outra a deontologia de uma classe profissional». Para esta médica, não é necessário que o Código esteja totalmente de acordo com a lei, nem sequer é obrigatório que uma nova lei implique sempre e automaticamente uma alteração do enunciado de princípios deontológicos. Tal como para os outros candidatos, «há estruturas próprias e especialistas preparados para dar contributos a esta alteração», conclui Ana Aleixo.

fonte: primeirasedicoes.expresso.clix.pt/ed1339/r0761.asp


Comentário:

O Aborto tem sido um dos casos mais falados ultimamente.

Com o segundo referendo tão próximo as opiniões dividem-se, tal como da 1ª vez. E não são só as opiniões dos cidadãos e dos políticos como principalmente as opiniões dos médicos e enfermeiras que poderão vir a ter “autorização” para praticar abortos legalmente.
No princípio deste mês Gentil Martins, antigo bastonário da Ordem dos Médicos, apelou aos clínicos para que sejam «objectores de consciência» e se recusem a fazer abortos caso o «sim» vença no referendo, porque – citando – «a lei não ultrapassa a ética».
Com opinião diferente à de Gentil Martins, está o Provedor da Justiça que defende o facto de não se poderem punir os médicos que queiram praticar o aborto de acordo com a lei, já que, o código deontológico dos médicos é independente da lei penal.
Ainda assim, a urgente necessidade de se discutir a alteração do código de ética é bem visível pois, isso poderá fazer com que muitos médicos se recusem a praticar o aborto, ainda que legalmente, caso ganhe o “sim”.
Mas agora pergunto: Não nos estaremos a esquecer dos médicos e enfermeiros que sempre praticaram o aborto clandestinamente? Todos sabemos da existência desses casos e das condições precárias em que são realizados, pondo em risco, muitas vezes, a vida de quem quer abortar. Não estão também a quebrar o Código? Na minha opinião tanto o código como a lei.
Um dos princípios do Código Deontológico dos médicos diz que o médico deve guardar respeito pela vida humana desde o seu início. O Código diz ainda que só é permitido ao médico realizar uma interrupção de gravidez por razões médicas, excluindo as razões económicas e sociais. Num caso de violação é legal fazer um aborto, desde que a vitima assim o queira. Mas isso não envolve razões médicas e sim sociais. Deve ou não o médico realiza-lo na mesma? Deverá o médico deixar que nasça uma criança que no futuro poderá não ser amada pela mãe, pelo facto de a lembrar por tudo o que passou? Ou, pior ainda, deixa-la procurar outra forma de se ver livre da criança não desejada, uma forma arriscada?
Não defendo o aborto, mas sem duvida defendo a sua despenalização. A sua penalização não está a impedir que as pessoas o façam, apenas está a impedir que o façam de forma segura e em condições. Desde comprimidos que são usados para meios abortivos (quando na realidade são fabricados com outro objectivo), passando por clínicas em Espanha, e acabando em clínicas clandestinas em Portugal, o que uma mulher faz para não ter um filho indesejado pode custar-lhe a vida. Não será ético para os médicos salvar essa vida? Ao tentar salvar uma vida que ainda mal começou, acaba-se por perder, muitas vezes, 2 vidas.
O que é considerado ético muda de cultura para cultura e até de pessoa para pessoa. Deveria existir um código de ética? Será que os médicos quando pensam em fazer algo se preocupam realmente com o seu Código Deontológico? Não se preocuparão mais no que, a seu ver, é correcto? Se no próximo referendo ganhar o “sim” e o aborto for despenalizado haverá muita gente contra, mas acho que se deve dar uma oportunidade aqueles que o querem fazer em condições. Os médicos que não o quiserem fazer e forem objectores de consciência não serão obrigados a faze-lo. Certamente que muitos outros serão capazes de o fazer, e mesmo que vá contra o Código de Ética, deixará de ser ético para eles? Desde que não vá contra aquilo que eles defendem penso que não, pois, na minha opinião a ética é aquilo que cada um acha correcto e que não vai contra os seus valores nem contra a lei vigente.

1 comentário:

Maria Coelho, N.º4617 disse...

Na minha opinião o comportamento ético é muito relativo, varia de pessoa para pessoa, tem a ver com os valores de cada um, pois o que eu acho correcto, outra pessoa pode não achar e vice-versa. Contudo a ética na profissão já não tem haver muito com o que cada um pensa mas sim com um conjunto de regras/normas que são consideradas eticamente correctas na generalidade e que se o profissional não as cumprir sofre sanções disciplinares.
Em relação à opinião da minha colega não concordo muito, pois acho que a resolução deste problema não passa pela despenalização do aborto, mas sim por tomar medidas de apoio para estas situações. Eu tenho a certeza que muitas mulheres que recorrem ao aborto, porque simplesmente não têm condições económicas para criar mais uma criança, com certeza que se fossem apoiadas pela Segurança Social preferiam ter mais uma criança do que recorrem ao aborto, pondo em risco a sua própria vida.
Como a minha colega disse e muito bem existem casos em que médicos e enfermeiros praticam ilegalmente o aborto. Agora pergunto eu, será que estes profissionais cumprem o Código Deontológico porque acham que é correcto ou porque sofrem sanções disciplinares se não o cumprirem?
Este artigo tem sobretudo haver com o facto de ser necessário adaptar o Código Deontológico da Ordem dos Médicos à lei, no caso de o "sim" ganhar no referendo que vai ser realizado em relação ao aborto.
Como em tudo na vida há profissionais que defendem que o Código deve ser alterado, outros por sua vez consideram o Código Deontológico mais importante e defendem que este se deve manter igual.
Actualmente no Código Deontológico da Ordem dos Médicos nos termos do Art. 47.º/2/3, considera-se falta deontológica grave a prática de aborto, excepto se estiver em causa a vida da paciente. Porém, acho que o Código Deontológico da Ordem dos Médicos devia prever também a prática do aborto quando o feto tem deformações graves, sendo estas, possíveis de detectar com os exames médicos. Por outro lado, acho que em mais nenhum caso devia ser legal o aborto. Por exemplo, se uma mulher for violada pode no mesmo dia recorrer a pílula do dia seguinte, existem tantas formas de prevenir uma gravidez indesejada. Actualmente existem tantos métodos anticonceptivos, sendo considerados muito eficazes na prevenção da gravidez que acho que não se justifica legalizar o aborto.
Existem tantos casos de pessoas que não tomam as devidas precauções e depois engravidam, ou porque saíram a noite beberam demais, ou porque fazem sem preservativo porque o namorado não gosta ou porque é melhor…As pessoas devem ser mais responsáveis e devem pensar para além do prazer que vão ter e tomar precauções.
Na minha opinião o Código Deontológico da Ordem dos Médicos não deveria ser alterado nesse aspecto e o aborto também não deveria ser legalizado, a resolução deste problema como já tinha dito anteriormente passa por criar medidas de apoio para estas situações, pois na grande maioria as mulheres que recorrem ao aborto, são de famílias destruturadas, com dificuldades económicas, adolescentes e mal informadas. Acho que devíamos começar por aqui. Talvez assim Portugal começa-se a ter um aumento da taxa de natalidade, diminuíam-se os abortos ilegais e escusava-se assim de gastar-se milhares de euros, que iram sair com certeza do bolso de todos os portugueses. Era uma medida de certeza muito mais eficaz do que legalizar o aborto e certamente menos dispendiosa.
Eu acho que Portugal é um país com muitas qualidades apesar do que os portugueses possam dizer e este referendo ao aborto é mais uma oportunidade de os portugueses mostrarem o que valem. Contudo acho que seria muito importante se o aborto não for legalizado, que se apoiassem mais as mulheres nestas situações, através de incentivos para terem bebés porque Portugal bem precisa.
Contudo, se ganhar o "sim" acho que o Código Deontológico da Ordem dos Médicos, não deve ser alterado, pois para o médico, o Código Deontológico é mais importante do que a lei do país e não tem obrigatóriamente que se adaptar à lei.
Só espero que no dia de votar os portugueses reflictam bastante e que façam a melhor escolha, tanto para as mulheres como para os contribuintes, porque são estes que vão pagar! Pois o que as mulheres realmente querem não é a despenalização do aborto mas sim condições para terem os seus filhos!