Excerto do artigo Tradição fora da Lei, in revista Pública, 17 de Dezembro de 2006:
“Cheira a carne fresca. Cheira à carne do porco preto morto ilegalmente esta madrugada. Daqui a pouco tempo já haverá brasas para assar uma dúzia de costeletas. […] Mais tarde, toda a carne fresca será vendida ilegalmente em Lisboa […]. Muitos consumidores compram este tipo de alimentos e bebidas artesanais de produção ilegal, em feiras ou directamente a quem os faz. […] Em caso de azar, um bom advogado poderia defender Sousa [o produtor], alegando a legitimidade da sua desobediência civil. Nem que fosse necessário levar o assunto ao Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, falar de tradição e do direito à identidade cultural. Antes, num tribunal português, o advogado poderia citar o DL 96/2000, que ‘considera a gastronomia portuguesa como um bem imaterial integrante do património cultural de Portugal’, onde se lê, por exemplo, que a gastronomia nacional é um ‘património intangível que cumpre salvaguardar e promover’. […]
Como os princípios de Sousa têm mais a ver com a qualidade que com a legalidade. Estão mais perto das tradições gastronómicas alentejanas do que das regras de ‘segurança alimentar’ estabelecidas pela União Europeia. Produz tudo o que vende e vende apenas ao consumidor final, por regra pessoas que já conhecem e lhe vão encomendando mais pão, carne e outros produtos gastronómicos de alta qualidade. Sousa defende que ‘a única forma de haver segurança alimentar é reduzir o percurso entre o produtor e o consumidor’.[…]
Se a matança continua a ser feita, apesar das limitações legais, é porque quem a faz conhece ‘os princípios de qualidade do alimento […] As pessoas têm a noção que as normas comunitárias não o permitiriam, mas têm uma convicção um bocadinho mais forte: quem faz a matança do porco tem a certeza absoluta daquilo que está a comer. Não se utiliza, por exemplo, pimentão moído industrial’, apenas massa de pimentão feita na aldeia. […]
O produtor diz que hoje em dia não é viável vender carne legalmente, a menos que a produção seja muito grande. Queixa-se da distância até ao matadouro mais próximo, do número infinito de animais que esse matadouro aceita receber, das regras de transporte dos animais… ‘Deveria haver uma fiscalização pedagógica. E o que acontece é que existe uma fiscalização punitiva. Uma caça à multa, que serve no fundo para sustentar estruturas [burocráticas]’, defende enquanto vai cortando as costeletas de porco para o almoço.[…]”
Comentário
É sabido que os casos de “produção ilegal” de produtos tradicionais no nosso país não se ficam pelas dezenas nem pelas centenas. São muitos os que se dedicam à criação de animais, ao fabrico artesanal de enchidos, queijos, azeite e mesmo vinho e que não conseguem ou não procuram sequer legalizar a actividade. Quanto aos obstáculos a quem, de facto, pretende licenciar uma unidade de produção agro-alimentar, eles são sobejamente conhecidos: o elevado investimento que implica, os anos de espera angustiante pela aprovação de um projecto de instalação industrial, a rigidez dos PDM e de outros planos de ordenamento no que respeita à localização das actividades económicas, os custos com a deslocação ao matadouro (no caso das carnes), etc. Se a isto aliarmos a perda em genuinidade a que está sujeito um produto que seja submetido à uniformização de uma linha de produção, em permanente contacto com o plástico e o alumínio, que vieram substituir a madeira e o barro de outros tempos, não é difícil entender a resistência de alguns produtores a submeter-se a um processo de licenciamento. Melhor ainda se poderão compreender os que desconfiam dos processos de certificação deste tipo de produtos. Poderá afinal um processo de certificação garantir a verdadeira qualidade do produto, quando o que é certificado na realidade é o processo de fabrico?
O problema não é de fácil resolução, nem é fácil tomar partido nesta matéria, para quem, como eu, trabalha no apoio à criação de empresas. Por um lado, é função do técnico de acompanhamento alertar para as condicionantes legais de cada negócio, incentivando o cumprimento da lei em vigor, que mais não seja por uma questão de justiça para com os produtores que já os fazem, que arriscaram um investimento colossal, face à sua dimensão (no caso das pequenas unidades), que suportam os custos dos impostos e da certificação. Por outro, perante a falta de condições financeiras dos pequenos produtores, a impossibilidade de se ficar à espera durante anos a fio até que os processos legais sejam desbloqueados (pois é a sobrevivência familiar que está em causa) e, acima de tudo, o facto de existir um mercado para o produto, feito à margem dos requisitos industriais, que assegura o escoamento total da produção, que argumentos poderão justificar a defesa cega da formalização e do selo, quando o consumidor informado e verdadeiramente apreciador do genuíno procura precisamente o produto caseiro, de preferência adquirido directamente a quem o fez?
O dilema ético é evidente: não pode ser ética uma conduta que assenta na ilegalidade. Quem trabalha à margem da lei, foge às obrigações que recaem sobre os outros. Além disso há que garantir alguma forma de controlar a qualidade do que é produzido, evitando riscos para a saúde dos consumidores. Porém, será ético exigir aos pequenos produtores que se legalizem (sabendo que isso pode implicar uma condenação da viabilidade económica do negócio, logo à partida) ou fechem portas, colocando-se em risco não só a sua fonte de rendimento familiar, mas também a extinção de práticas ancestrais, sustentáculos da nossa cultura rural e, portanto, das nossa identidade enquanto povo?
A publicação, em 1999, da regulamentação dos Estabelecimentos de Venda Directa, que se aplica a unidades de muito pequena dimensão e vem aligeirar muitos dos requisitos legais de licenciamento impostos às unidades industriais, adaptando-os à pequena escala destas unidades, com as necessárias contrapartidas (como sejam o estabelecimento de uma quantidade máxima a produzir, o número de trabalhadores, a delimitação dos locais de venda, etc.), traduziu-se numa medida importante para lidar com esta realidade, embora ainda insuficiente, face ao desfasamento entre as exigências da normalização e o prazer incomparável de saborear uma linguiça ou um queijo artesanal como o faziam os nossos bisavós.
Sónia Pinto nº 4697
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2 comentários:
Cada vez mais, nos dias que correm, as pessoas se preocupam com os alimentos que ingerem, mas por vezes as dificuldades financeiras são de tal forma, que preferem comprar alimentos de baixa qualidade e sem qualquer certificação.
Este tipo de produtos, ditos artesanais, na sua maioria das vezes, não reúnem, ou violam os requisitos mínimos de higiene e segurança alimentar.
O Decreto-Lei n.º 354/90, de 10 de Novembro, e a Portaria n.º 1229/93, de 27 de Novembro, que transpõem a Directiva n.º 77/99/CEE, estabelecem as condições sanitárias aplicáveis à produção e à colocação no mercado de produtos à base de carne e de determinados outros produtos de origem animal.
A qualidade dos produtos alimentares é um conceito complexo e evolutivo, abrangendo várias vertentes, como a "segurança sanitária ", o gosto, a gastronomia, mas também a lealdade da oferta nos mercados, assim como a confiança estabelecida entre fornecedores e clientes.
Como a própria noticia diz, “as pessoas têm a noção que as normas comunitárias não o permitiriam, mas têm uma convicção um bocadinho mais forte: quem faz a matança do porco tem a certeza absoluta daquilo que está a comer”, mas por vezes não é bem assim, porque nem sempre o que é “caseiro” é de boa qualidade, uma vez que este tipo de produtos não passam por nenhum tipo de controlo de qualidade.
A conduta do sr. Sousa não é de forma alguma aceitável e nem tão pouco eticamente correcta, porque dá a entender que o produtor (sr.Sousa), sabe perfeitamente que é ilegal a venda directa ao cliente deste tipo de produtos.
De facto também sou da opinião que não pode ser ética uma conduta que assenta na ilegalidade.
Esta carne é vendida posteriormente em feiras ou directamente a quem os faz, e desta forma, o DECRETO-LEI Nº 57/99, publicado em DR 50, I-A Série de 1999.03.01, Conselho de Ministros, estabelece normas para o licenciamento dos pequenos estabelecimentos industriais de venda directa do sector agro-alimentar, nomeadamente segundo o artigo 2.º consideram-se estabelecimentos de venda directa os que satisfaçam as seguintes condições: as matérias-primas de base utilizadas na laboração dos produtos provenham de produção local; os produtos laborados sejam na sua totalidade vendidos directamente ao consumidor, no próprio local de produção ou nas feiras e mercados locais, desde que situados num raio de acção de 40 km do local de produção, no continente, ou na ilha respectiva, no caso das Regiões Autónomas e o pessoal ao serviço não ultrapasse a média anual de três trabalhadores.
A Segurança Alimentar é um assunto sério, uma vez que para o infectado tanto faz o tipo de contaminação, seja ela por bactérias, vírus ou parasitas, ele apenas pretende conhecer motivos e responsabilidades.
Por isso, a implementação de sistemas de segurança alimentar não depende da solidariedade, de cadeias restritas de divulgação ou de condicionamentos não especificados, depende e muito da comunicação, da competência, da gradualidade de eficácia e da fiscalidade.
Na minha opinião é a falta de fiscalidade que faz com que este tipo de vendas continuem a existir.
Outra questão que gostava de salientar é a que diz respeito ao Perfil do Comerciante – Ética e Conduta Profissional.
Porque se o sr. Sousa se acha no direito de fazer venda directa, quer por exemplo na sua própria casa, quer em feiras, então no mínimo deveria respeitar a ética e a conduta profissional dos comerciantes.
Um dos factores importantes ao exercício da actividade comercial, é o
conhecimento das leis comerciais vigentes no País.
E, para ter conhecimento dessas leis, é necessário possuir como habilitações mínimas a 4ª classe ou níveis de escolaridade superiores.
O Comerciante, é o elo de ligação entre o Produtor (Comerciante
Industrial) e o Consumidor, mas neste caso concreto o produtor e o consumidor são a mesma pessoa.
Para uma melhor conduta ética, todo o Comerciante tem de cumprir com o que for estabelecido pela Lei, por isso fica sujeito a um determinado conjunto de obrigações.
Os comerciantes são essencialmente obrigados a adoptar uma Firma, a ter escrituração mercantil, a fazer inscrever no registo comercial os actos a ele sujeitos e a dar balanço e a prestar contas.
A ética é o conjunto de normas de convivência entre os homens de
maneira sistematizada, com carácter histórico que evoluciona com o
desenvolvimento social.
A conduta está relacionada ao conjunto dos procedimentos do comerciante no convívio com os seus clientes e demais pessoas afectas ao seu negócio que se reflecte no atendimento, na administração dos seus bens ao assumir a direcção da
empresa ou firma comercial. A moral ou ética comercial, reflecte em forma de
normas e regras de “conduta”, muitas vezes ditadas pelas leis vigentes.
O comerciante, exerce uma profissão social e economicamente
muito relevante, como em qualquer outra profissão, daí que nem todos os
comerciantes possuem condutas aceitáveis, pois enquanto uns cumprem com os seus deveres de bons profissionais, outros encaminham pela concorrência desleal, com concorrência fraudulentas, de venda de produtos roubados,
contrabandeados, fugidos aos impostos, questão que constitui crimes
e devem ser punidos pela lei.
É uma falta de ética comercial a suspensão, ocultação ou alteração, por parte do vendedor ou de qualquer intermediário, de denominação de origem dos produtos ou da marca registada do produtor ou fabricante em produtos destinados à venda e que não tenham sofrido modificação no seu acondicionamento.
Termino este comentário dizendo que, pessoalmente, não tenho nada contra este tipo de matanças, no entanto devemos lutar por um país mais ético, e essa luta passa pela nossa própria escolha. Porque tanto tem falta de ética quem comercializa ilegalmente, como quem compra esses produtos, sabendo em que condições os está a comprar.
Filipa Duarte nº 4269
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